top of page

Um mergulho na depressão

Três histórias

Vídeo 1

Para além da angústia

por Pâmela Carvalho

“Me falam para trabalhar e parar de pensar besteira. Mas não é tão fácil assim”

depressão nervosa é um distúrbio psiquiátrico associado a um desequilíbrio de substâncias químicas do cérebro. A doença possui sintomas físicos e psicológicos, tais como apatia (falta de interesse por atividades cotidianas), isolamento social, desânimo, diminuição da libido, fraqueza, diminuição ou aumento de apetite e alterações no sono. O quadro depressivo se diferencia do humor deprimido pois costuma ser mais duradouro, intenso e persistente. “O depressivo não está só triste. Ele sente a angústia interferindo nas suas atividades do dia a dia e tem outros sintomas incapacitantes. Esse quadro de tristeza crônica tende a ter certa continuidade, e nem sempre tem causa definida”, afirma a psicóloga Fernanda Dias, especialista em transtornos do humor.

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão já é a doença mais incapacitante do mundo. Há por volta de 615 milhões de pessoas com depressão ao redor do mundo, o que corresponde a quase 10% da população mundial. A OMS, em pesquisa publicada no século passado, previu que, em 2018, a depressão seria responsável por 9,8% dos anos de vida saudável perdidos para doenças. Esse número já foi alcançado em 2010.

 

Para a psicóloga Fernanda Dias, os números são alarmantes e as perspectivas futuras, negativas. “O tratamento para a depressão esbarra em vários obstáculos, sendo que um dos maiores é cultural: não se aceita que o depressivo está doente. O humor deprimido do diagnosticado é malvisto, apontado como ‘frescura’. O tratamento é longo e exige comprometimento não só do diagnosticado, mas também de pessoas próximas, que deveriam mostrar apoio. Mas não vemos isso acontecendo: muitos deprimidos acabam escondendo a condição ou, quando a expõem, não se sentem acolhidos. Isso só piora o quadro e engrossa as estatísticas alarmantes sobre a depressão”, diz Fernanda. ”Depressão é uma doença que mata, e deve ser tratada com seriedade”, completa.

 

Em 2011, a revista inglesa The Lancet Psychiatry publicou um artigo sobre a saúde mental dos brasileiros. Segundo o texto, no Brasil, os mais pobres e com escolaridade baixa são os mais vulneráveis à depressão. Isso pode ser explicado, segundo a publicação, com base nas adversidades enfrentadas por essas pessoas, e na dificuldade encontrada para superá-las. Essa parcela da população brasileira, no entanto, enfrenta dificuldades para ter acesso ao diagnóstico e tratamento: estima-se que apenas 5% dos diagnósticos de depressão foram registrados em postos de saúde.

 

Ana Clara*, de 17 anos, faz parte dos 5%. Moradora de uma comunidade no extremo Leste de São Paulo, foi diagnosticada há dois anos. Ela notou que algo poderia estar errado com sua saúde quando passou a ficar sem energia para atividades cotidianas. “Eu não tinha energia nem para falar com minha mãe e meu marido. Só queria dormir o dia inteiro. Fui para o postinho achando que estava com dengue, porque muita gente aqui tinha pegado”, afirma. No posto de saúde, fez exames de sangue e urina: tudo ok. O médico, atento à situação de vulnerabilidade social da comunidade em que Ana mora, começou a fazer perguntas sobre a vida da menina. “Ele começou a perguntar se meu marido me batia, com quantos anos tive minha primeira filha, como era minha relação com meus pais e com o resto da minha família. Contei que apanho, contei dos meus dois filhos pequenos e que meu pai está preso”, continua Ana. O diagnóstico de depressão veio acompanhado de duas recomendações: uma receita de Fluoroxetina (genérico do famoso antidepressivo Prozac) e a de procurar terapia na UBS mais próxima.

​

Junto com o diagnóstico, veio também o preconceito: “Ninguém aqui acha que eu tenho que procurar ajuda, não. A gente não tem tempo para essas coisas. Eles dizem que se eu estou triste, só preciso me mexer para ficar feliz”, conta. “Me falam para trabalhar e parar de pensar besteira. Mas não é tão fácil assim”, finaliza.

​

* nome trocado a pedido da entrevistada

A

Entenda o porquê

por Marina Fornasier

“A depressão envolve, na maioria dos casos, uma perda de sensibilidade a tudo que produz angústia, gerando uma apatia geral, na qual o indivíduo vai perdendo o sentido de tudo…”.

M

uito se fala, hoje em dia, sobre a depressão ser a doença do século 21. A maior parte dos questionamentos se relaciona aos motivos que levam a essa situação e como tratar e melhorar a vida das pessoas que convivem com o problema. A falta de informação ainda impera, o que dificulta o acesso da população a recursos e opções de tratamento. O psicólogo clínico Leonardo Rosnel, de Assis (São Paulo), explica, em entrevista, algumas questões relacionadas a esse assunto.

​

Não é só tristeza: Em sua opinião, porque a depressão tem crescido significativamente nos últimos anos?
Leonardo Rosnel: Diversos fatores contribuem para esse fenômeno. A rapidez das vias de comunicação e as redes sociais tornam as pessoas mais expostas publicamente e, em vez de melhorarem a socialização, criam uma condição de alienação, atrapalhando e dificultando os relacionamentos, aumentando os julgamentos morais e revelando condições que antes eram escondidas pelas pessoas. Há também a questão do aumento da competição no mercado de trabalho, forçando as pessoas a atingir metas proibitivas, contribuindo muito para um estresse generalizado, impedindo uma vida pessoal e influenciando negativamente na educação dos filhos. O aumento da criminalidade também é um fator importante, pois tornou o uso de drogas um problema de saúde pública. Há uma facilidade no acesso a drogas químicas e sintéticas, que produzem em larga escala pessoas com diversos distúrbios emocionais.

​

NEST: Observando dados sobre depressão e depoimentos de pessoas que sofrem com ela, pode-se perceber que, em vários casos, ela se inicia durante a puberdade. Quais motivos e condições levam a esse fato?
LR: Sem dúvida na puberdade todos os problemas se agravam, por diversos fatores, não só a depressão. Na puberdade, vão aparecer todas as sequelas da educação na infância, todas as proteções, rejeições, abusos, violência etc. Cada indivíduo traz consigo uma história pessoal que justifica seu quadro. Assim, cada caso é um caso e tem que ser avaliado individualmente. Mas, de forma geral, a necessidade do adolescente de se individualizar e seguir a própria vida sem depender dos pais gera muitas condições de inferioridade e impedimentos que também contribuem para um quadro depressivo.

​

NEST: Quais as possibilidade de tratamentos para a depressão?
LR: É claro que o tratamento da depressão vai variar de acordo com o que estabeleceu o processo patológico ou disfuncional. Mas, de uma forma geral, a principal intervenção envolve a identificação ou o diagnóstico das variáveis de controle que são relacionadas ao quadro e a dessensibilização dessas variáveis, seguida de uma diminuição drástica do excesso de trabalho e estudo, o aumento da vida social e lazer, e  treinamento para lidar com os conflitos familiares e amorosos. Ou seja, além da intervenção técnica, uma mudança de modo de vida.

​

NEST: A depressão está ligada ou pode desencadear outros transtornos como ansiedade, bipolaridade, síndrome do pânico etc.? Por quê?
LR: A depressão é produto de um distúrbio de ansiedade prolongado, ou seja, a ansiedade é o processo desencadeador. A bipolaridade é um dos diversos sintomas da depressão, envolvendo a mesma condição de controle. A depressão envolve, na maioria dos casos, uma perda de sensibilidade a tudo que produz angústia, gerando uma apatia geral, na qual o indivíduo vai perdendo o sentido de tudo e há um desinteresse agressivo por realizar qualquer coisa ou fazer manutenções, e como existe muita cobrança, a pessoa insiste em trabalhar ou manter todos à sua volta satisfeitos, escondendo a condição. Aí entra o pânico, que incapacita o organismo para que o mesmo se afaste das ameaças que o próprio indivíduo não está conseguindo evitar, impedindo assim o avanço de algum problema autoimune.

​

NEST:  Você acredita que os problemas psicoemocionais são tratados com a importância que lhes é devida?
LR: As questões de saúde mental ainda são seriamente desconsideradas em nossa sociedade. O que não se sabe ou se observa é que 80% dos problemas de saúde chamados “físicos” são, na verdade, de fundo emocional. Problemas psicológicos são vistos de forma primitiva, como algo da vontade do indivíduo para chamar a atenção, ou apenas problemas afetivos, como “preguiça” ou falta de interesse, isso sem citar questões religiosas que tratam muitos problemas emocionais como pecado ou possessões.

​

NEST:  Para você, a depressão é mais estigmatizada que outros transtornos?
LR:  Tudo aquilo que não temos controle se torna uma vergonha. Um problema emocional como a depressão passa a nítida impressão de incapacidade e incompetência dentro de nossa cultura, o que atrasa muito o diagnóstico, porque as pessoas escondem as reais condições em que se encontram. Como o mercado de trabalho está soterrado e a necessidade de ser aceito socialmente e pela família é muito grande, qualquer distúrbio que faça com que a pessoa se torne improdutiva é muito malvisto, e, assim, quem arrasta o problema é severamente julgado.

​

NEST: Você acha que há políticas públicas suficientes para a depressão? Qual seria o plano ideal para ajudar a população nessa condição?
LR: O governo não oferece políticas públicas suficientes para quase nada que a população precise, muito menos para a depressão, que é uma condição completamente incompreendida e ainda é vista como algo que surge de dentro para fora do indivíduo, como se não tivesse causa. A intervenção para ajudar a população na questão da depressão vai variar quanto a qual grupo queremos ajudar; se uma família passa fome, não adianta querer tratar depressão; temos de alimentá-la primeiro; se não tem saneamento básico, isso tem de ser promovido. Mas, partindo do princípio que seja um grupo com um mínimo de condições de vida, deve-se, antes de tudo, investir na educação das crianças, dando importância a questões emocionais e humanas, impondo limites e diminuindo o excesso de proteção. Além disso, é preciso agir na conscientização da importância de tratar problemas históricos que as pessoas abandonam, intervir em problemas domésticos e nos relacionamentos, principalmente a violência, que é causa de muitos distúrbios. É fundamental conscientizar quanto ao estabelecimento de limites para os filhos. Isso tudo vai propiciar uma melhoria da qualidade de vida. Um último ponto seria intervir nas condições das relações de mãe e filha e pai e filho, que são uma das maiores causas de depressão.

​

NEST: Além de fatores sociais e pessoais causarem transtornos mentais, fatores químicos ou genéticos também podem ser causadores? 
LR: Fatores químicos e genéticos não são a causa de distúrbios emocionais, apenas se o dano for neurológico, ou seja, que existam danos estruturais no cérebro; fora isso, todo distúrbio emocional é funcional, ou seja, é uma restrição no funcionamento do cérebro. Questões genéticas e químicas podem ser vistas também como predisponentes de condições emocionais, contribuindo para um aumento da responsividade e hipersensibilidade do organismo a algumas variáveis de controle que podem produzir distúrbios.

O que é depressão para você?

O que é depressão para você?

Fizemos esta pergunta para algumas pessoas. Ouça agora suas respostas.

O que é depressão para você? - Não é só tristeza
00:00 / 00:00

N

o Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, 7,6% das pessoas são oficialmente diagnosticadas com depressão. Na Região Sul, este número chega a 12,6% de toda a população. Na Região Norte, por exemplo, apenas 3,1% das pessoas têm diagnóstico de depressão. Mesmo assim, a quantidade de pessoas com depressão pode ser bem maior, já que se estima que muita gente possua a doença mas ainda não sabe, ou não tem acesso a diagnósticos e tratamentos.

​

Os números também mostram que a depressão é uma doença muito mais feminina do que masculina. A mesma pesquisa brasileira mostrou que 10,9% das mulheres estavam com depressão em 2013, enquanto apenas 3,9% dos homens receberam esse diagnóstico. E a doença também afeta principalmente as pessoas mais velhas: 11,1% das pessoas entre 60 e 64 anos têm a doença e só 3,9% da população entre 18 e 29 anos é depressiva.

​

Para continuar tentando traçar o perfil do depressivo no Brasil, a pesquisa constatou mais diagnósticos na população urbana (8%) do que na área rural (5,6%), assim como mais pessoas brancas diagnosticadas (9%) do que negras (5,4%). Quando o assunto é instrução, há mais concentração de diagnósticos de depressão nos dois extremos: 8,7% das pessoas com ensino superior completo apresentaram depressão, assim como 8,6% de quem tem no máximo o ensino fundamental incompleto. Estes números se reduzem consideravelmente nas outras faixas de instrução.

​

Olhando para esse cenário, se tentássemos traçar grosseiramente o perfil do depressivo mais diagnosticado no Brasil, ele seria uma mulher branca acima dos 60 anos, que vive em uma região urbana do Sul do país, provavelmente com o ensino superior completo.

​

OS CUSTOS DA DEPRESSÃO

​

Depressão mata. E cada vez mais. Em 1996 o Brasil teve 58 pessoas mortas por causas associadas à depressão. Dezesseis anos depois, em 2012, esse número já era de 467, um aumento de 705%. O número de suicídios, por sua vez, subiu neste mesmo período de 6.743 para 10.321. São 28 suicídios por dia no Brasil, e a literatura especializada no assunto trabalha com números próximos a 90% dos casos de suicídio sendo causados por distúrbios graves de depressão. Dá para ter uma noção do tamanho do problema.

​

A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou em um estudo de 2014 a discrepância entre os gastos com saúde mental entre os países mais pobres e os mais ricos do mundo. Enquanto a parcela mais pobre do planeta destina não mais do que 1% de seu orçamento para a área de saúde mental (o que representa menos do que 2 dólares por pessoa), os países mais ricos destinam ao menos 5% de seus recursos (mais de 50 dólares per capita) para o tratamento de depressão, transtorno de bipolaridade e doenças do gênero.

​

Em abril deste ano, um artigo publicado na revista científica The Lancet Psychiatry conseguiu estimar quanto o investimento em saúde mental de um país consegue trazer de retorno social e econômico. Ao analisar os gastos de 36 países, tanto subdesenvolvidos como mais ricos, os pesquisadores conseguiram afirmar que caso 147 bilhões de dólares sejam investidos na área de saúde mental nestes países até 2030, vai ser possível ter um retorno econômico de pelo menos 399 bilhões de dólares, coms 5% de melhora de produtividade das pessoas no trabalho. Outros 310 bilhões de dólares são ganhos com a melhora na saúde, evitando a necessidade de tratamentos mais custosos e intensivos.

Números da depressão

Os números da depressão

por Murilo Carnelosso

Entre os anos de 1990 e 2013, o número de pessoas que sofre de depressão e ansiedade aumentou de 416 milhões para 615 milhões. Isso já representa quase 10% da população do planeta. Mas não são apenas estes os números assustadores associados à depressão.

N

o Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, 7,6% das pessoas são oficialmente diagnosticadas com depressão. Na Região Sul, este número chega a 12,6% de toda a população. Na Região Norte, por exemplo, apenas 3,1% das pessoas têm diagnóstico de depressão. Mesmo assim, a quantidade de pessoas com depressão pode ser bem maior, já que se estima que muita gente possua a doença mas ainda não sabe, ou não tem acesso a diagnósticos e tratamentos.

​

Os números também mostram que a depressão é uma doença muito mais feminina do que masculina. A mesma pesquisa brasileira mostrou que 10,9% das mulheres estavam com depressão em 2013, enquanto apenas 3,9% dos homens receberam esse diagnóstico. E a doença também afeta principalmente as pessoas mais velhas: 11,1% das pessoas entre 60 e 64 anos têm a doença e só 3,9% da população entre 18 e 29 anos é depressiva.

​

Para continuar tentando traçar o perfil do depressivo no Brasil, a pesquisa constatou mais diagnósticos na população urbana (8%) do que na área rural (5,6%), assim como mais pessoas brancas diagnosticadas (9%) do que negras (5,4%). Quando o assunto é instrução, há mais concentração de diagnósticos de depressão nos dois extremos: 8,7% das pessoas com ensino superior completo apresentaram depressão, assim como 8,6% de quem tem no máximo o ensino fundamental incompleto. Estes números se reduzem consideravelmente nas outras faixas de instrução.

​

Olhando para esse cenário, se tentássemos traçar grosseiramente o perfil do depressivo mais diagnosticado no Brasil, ele seria uma mulher branca acima dos 60 anos, que vive em uma região urbana do Sul do país, provavelmente com o ensino superior completo.

​

OS CUSTOS DA DEPRESSÃO

​

Depressão mata. E cada vez mais. Em 1996 o Brasil teve 58 pessoas mortas por causas associadas à depressão. Dezesseis anos depois, em 2012, esse número já era de 467, um aumento de 705%. O número de suicídios, por sua vez, subiu neste mesmo período de 6.743 para 10.321. São 28 suicídios por dia no Brasil, e a literatura especializada no assunto trabalha com números próximos a 90% dos casos de suicídio sendo causados por distúrbios graves de depressão. Dá para ter uma noção do tamanho do problema.

​

A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou em um estudo de 2014 a discrepância entre os gastos com saúde mental entre os países mais pobres e os mais ricos do mundo. Enquanto a parcela mais pobre do planeta destina não mais do que 1% de seu orçamento para a área de saúde mental (o que representa menos do que 2 dólares por pessoa), os países mais ricos destinam ao menos 5% de seus recursos (mais de 50 dólares per capita) para o tratamento de depressão, transtorno de bipolaridade e doenças do gênero.

​

Em abril deste ano, um artigo publicado na revista científica The Lancet Psychiatry conseguiu estimar quanto o investimento em saúde mental de um país consegue trazer de retorno social e econômico. Ao analisar os gastos de 36 países, tanto subdesenvolvidos como mais ricos, os pesquisadores conseguiram afirmar que caso 147 bilhões de dólares sejam investidos na área de saúde mental nestes países até 2030, vai ser possível ter um retorno econômico de pelo menos 399 bilhões de dólares, coms 5% de melhora de produtividade das pessoas no trabalho. Outros 310 bilhões de dólares são ganhos com a melhora na saúde, evitando a necessidade de tratamentos mais custosos e intensivos.

Quase um quinto das pessoas diagnosticadas com depressão prefere realizar sessões de psicoterapia como forma de tratamento (16,4%). O Brasil possui ao todo 2.739 unidades do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), as quais oferecem alguns tratamentos psicológicos gratuitos, principalmente para casos mais agudos da doença. Mas este número ainda é muito limitado para a quantidade de gente com depressão no país, principalmente em estados onde as unidades se resumem a poucas dezenas espalhadas por todo o território. São Paulo, o estado com mais unidades do CAPS, possui 453. O resultado disso é que uma parcela muito pequena busca ajuda nestas unidades especializadas e recorre a consultas privadas ou às unidades básicas de saúde (UBS). 42,3% das pessoas diagnosticadas com depressão se consultaram em clínicas e consultórios privados. Outros 33,2% receberam o diagnóstico nas UBSs. Outros 9,2% em hospitais públicos (que nestes casos normalmente já indicam casos mais agudos da doença) e apenas 5,3% nos Centros de Apoio Psicossocial.

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

​

 

 

 

 

 

 

 

Como os números mostram, a maior parte das pessoas ainda recorrem às consultas privadas para conseguir o atendimento. Informação que poucos sabem é que os planos de saúde não podem limitar o número de atendimentos psicológicos do paciente. Este tipo de tratamento integra o Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e por meio de relatório médico, o plano de saúde fica obrigado a cobrir as consultas. Caso o plano resolva limitar a quantidade de algum tratamento psicológico específico, o paciente pode entrar com uma ação judicial contra a empresa.

​

​

​

​

Do total de pessoas diagnosticadas com depressão no Brasil, praticamente metade utiliza algum tipo de medicamento para tratamento (52%), cujas caixas podem custar desde menos de R$ 10 (ou ainda mais baratos no caso de antidepressivos adquiridos através do programa Farmácia Popular) a quase R$ 100, dependendo de seu tipo, de sua dosagem, se a sua patente é quebrada no país, entre outros fatores. E apenas 46,4% dos brasileiros diagnosticados com depressão receberam atendimento médico nos últimos 12 meses à realização da última Pesquisa Nacional de Saúde (2013).

N

o Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, 7,6% das pessoas são oficialmente diagnosticadas com depressão. Na Região Sul, este número chega a 12,6% de toda a população. Na Região Norte, por exemplo, apenas 3,1% das pessoas têm diagnóstico de depressão. Mesmo assim, a quantidade de pessoas com depressão pode ser bem maior, já que se estima que muita gente possua a doença mas ainda não sabe, ou não tem acesso a diagnósticos e tratamentos.

​

Os números também mostram que a depressão é uma doença muito mais feminina do que masculina. A mesma pesquisa brasileira mostrou que 10,9% das mulheres estavam com depressão em 2013, enquanto apenas 3,9% dos homens receberam esse diagnóstico. E a doença também afeta principalmente as pessoas mais velhas: 11,1% das pessoas entre 60 e 64 anos têm a doença e só 3,9% da população entre 18 e 29 anos é depressiva.

​

Para continuar tentando traçar o perfil do depressivo no Brasil, a pesquisa constatou mais diagnósticos na população urbana (8%) do que na área rural (5,6%), assim como mais pessoas brancas diagnosticadas (9%) do que negras (5,4%). Quando o assunto é instrução, há mais concentração de diagnósticos de depressão nos dois extremos: 8,7% das pessoas com ensino superior completo apresentaram depressão, assim como 8,6% de quem tem no máximo o ensino fundamental incompleto. Estes números se reduzem consideravelmente nas outras faixas de instrução.

​

Olhando para esse cenário, se tentássemos traçar grosseiramente o perfil do depressivo mais diagnosticado no Brasil, ele seria uma mulher branca acima dos 60 anos, que vive em uma região urbana do Sul do país, provavelmente com o ensino superior completo.

​

OS CUSTOS DA DEPRESSÃO

​

Depressão mata. E cada vez mais. Em 1996 o Brasil teve 58 pessoas mortas por causas associadas à depressão. Dezesseis anos depois, em 2012, esse número já era de 467, um aumento de 705%. O número de suicídios, por sua vez, subiu neste mesmo período de 6.743 para 10.321. São 28 suicídios por dia no Brasil, e a literatura especializada no assunto trabalha com números próximos a 90% dos casos de suicídio sendo causados por distúrbios graves de depressão. Dá para ter uma noção do tamanho do problema.

​

A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou em um estudo de 2014 a discrepância entre os gastos com saúde mental entre os países mais pobres e os mais ricos do mundo. Enquanto a parcela mais pobre do planeta destina não mais do que 1% de seu orçamento para a área de saúde mental (o que representa menos do que 2 dólares por pessoa), os países mais ricos destinam ao menos 5% de seus recursos (mais de 50 dólares per capita) para o tratamento de depressão, transtorno de bipolaridade e doenças do gênero.

Em abril deste ano, um artigo publicado na revista científica The Lancet Psychiatry conseguiu estimar quanto o investimento em saúde mental de um país consegue trazer de retorno social e econômico. Ao analisar os gastos de 36 países, tanto subdesenvolvidos como mais ricos, os pesquisadores conseguiram afirmar que caso 147 bilhões de dólares sejam investidos na área de saúde mental nestes países até 2030, vai ser possível ter um retorno econômico de pelo menos 399 bilhões de dólares, coms 5% de melhora de produtividade das pessoas no trabalho. Outros 310 bilhões de dólares são ganhos com a melhora na saúde, evitando a necessidade de tratamentos mais custosos e intensivos.

Do total de pessoas diagnosticadas com depressão no Brasil, praticamente metade utiliza algum tipo de medicamento para tratamento (52%), cujas caixas podem custar desde menos de R$ 10 (ou ainda mais baratos no caso de antidepressivos adquiridos através do programa Farmácia Popular) a quase R$ 100, dependendo de seu tipo, de sua dosagem, se a sua patente é quebrada no país, entre outros fatores. E apenas 46,4% dos brasileiros diagnosticados com depressão receberam atendimento médico nos últimos 12 meses à realização da última Pesquisa Nacional de Saúde (2013).

Quase um quinto das pessoas diagnosticadas com depressão prefere realizar sessões de psicoterapia como forma de tratamento (16,4%). O Brasil possui ao todo 2.739 unidades do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), as quais oferecem alguns tratamentos psicológicos gratuitos, principalmente para casos mais agudos da doença. Mas este número ainda é muito limitado para a quantidade de gente com depressão no país, principalmente em estados onde as unidades se resumem a poucas dezenas espalhadas por todo o território. São Paulo, o estado com mais unidades do CAPS, possui 453. O resultado disso é que uma parcela muito pequena busca ajuda nestas unidades especializadas e recorre a consultas privadas ou às unidades básicas de saúde (UBS). 42,3% das pessoas diagnosticadas com depressão se consultaram em clínicas e consultórios privados. Outros 33,2% receberam o diagnóstico nas UBSs. Outros 9,2% em hospitais públicos (que nestes casos normalmente já indicam casos mais agudos da doença) e apenas 5,3% nos Centros de Apoio Psicossocial.

Como os números mostram, a maior parte das pessoas ainda recorrem às consultas privadas para conseguir o atendimento. Informação que poucos sabem é que os planos de saúde não podem limitar o número de atendimentos psicológicos do paciente. Este tipo de tratamento integra o Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e por meio de relatório médico, o plano de saúde fica obrigado a cobrir as consultas. Caso o plano resolva limitar a quantidade de algum tratamento psicológico específico, o paciente pode entrar com uma ação judicial contra a empresa.

Mapa da depressão no Brasil

por André Spigariol e Murilo Carnelosso

Conheça a abrangência da depressão no País por meio de um mapa interativo

Precisamos reaprender a estimar as pessoas

por Quéfren de Moura

Como o afeto e a empatia rompem barreiras e quebram preconceitos associados à depressão

Estigmas

Videorreportagem

Não é só tristeza

dona desse relato é Mariana Barufi, estudante de Relações Internacionais, hoje com 21 anos, que a certa altura da adolescência começou a reparar que algo estranho estava acontecendo com ela. Ela passou a sofrer bullying na escola, e isso desencadeou outras situações em sua vida. Ela já não interagia muito com os amigos e familiares, não tinha vontade de fazer nada e às vezes chorava sem razão. Desanimada e entristecida, ela simplesmente não se abria com ninguém. Quem “analisava” sua situação de fora dizia que era a puberdade, ou a “preguiça” natural da adolescência, ou apenas “rebeldia sem causa” por conta da idade. E que ia passar. Que não havia por que se preocupar. Afinal de contas, todos os adolescentes são iguais.

 

Talvez, se fosse em outra fase da vida dela, diriam que “todas as mulheres são iguais”. Ou “todas as piscianas são iguais”... ou leoninas, ou corintianas, ou esquerdistas, ou roqueiras, ou o que quer que fosse. Jogando tudo num balaio só, as pessoas estigmatizam e esteriotipam as outras, e não conseguem enxergar muito além da superfície...

​

A depressão, nos dias de hoje, é muito mais comum do que se imagina, e é, sem sombra de dúvidas, um dos problemas de saúde mais graves que se tem em âmbito mundial. É o que afirma o professor doutor Paulo Rossi Menezes, chefe do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Saúde Mental Populacional: “Hoje uma proporção muito importante das pessoas de qualquer população sofre de sintomas de depressão.” Segundo o especialista, em torno de 5% das pessoas estão com sintomas importantes de depressão, e mais outros 15% têm sintomas leves ou moderados. “É algo muito comum, que uma em cada vinte, ou uma em cada dez pessoas, às vezes uma em cada cinco pessoas está sentindo em determinado momento”, acrescenta.

​

Obviamente, é importante distinguir a depressão da tristeza. Ou seja, existe um sofrimento a que todos estamos sujeitos, que não é a mesma coisa que a depressão, uma condição mais grave, persistente e severa, que requer ajuda especializada. Cristina Delfaque Marcondes, psicóloga e psicanalista, especialista em Saúde Mental da Rede Pública, explica: “O sofrimento e a tristeza fazem parte de nossa condição de viventes. Mas, nos dias de hoje, muitos não aceitam esse estado ou condição da alma. Em algumas situações da vida, a tristeza vai aparecer, e será necessário sofrer para se elaborar o luto.”

​

Embora as experiências de tristeza e sofrimento, inerentes à condição humana, sejam tão valiosas para a subjetividade humana quanto as de alegria, há uma certa negação da tristeza que impera nos dias de hoje. Infelizmente, por conta disso, muitas pessoas acabam por ignorar um quadro de depressão ou não aceitar que podem ter depressão, acreditando não se tratar de algo sério ou importante. Elas percebem que alguma coisa não está indo bem, e sofrem com isso, mas têm medo ou vergonha de buscar ajuda. E uma das razões para isso são as pressões da sociedade, as quais impõem ainda inúmeros preconceitos e estigmas às pessoas que convivem com a depressão.

 

MENOS ESTIGMA, MAIS ESTIMA

​

Você já escutou (ou até disse) que depressão é falta de fé, preguiça de enfrentar a vida, covardia, fraqueza, frescura ou tristeza? Ou, talvez, coisa de gente que não tem o que fazer e que só quer chamar a atenção? Pior do que estar longe da verdade, essas ideias errôneas ferem e marcam profundamente as pessoas.

​

O doutor Paulo Rossi Menezes define a depressão não como uma reação simples de tristeza ou de desânimo frente a uma adversidade. Segundo o especialista, “Ela é um pouco mais persistente. Ela pode ser, e com frequência é, desencadeada por uma adversidade, mas ela vai além da adversidade em si. Ela interfere na vida da pessoa. Ou seja, o que ela sente traz prejuízo para o funcionamento do seu dia a dia.” Cristina Marcondes também explica: “A depressão é uma crise afetiva, então ‘não é só tristeza’! Pode ser uma oportunidade, um sinal importante de que esse sujeito precisa se ocupar de si, de seu percurso de vida.”

 

Mariana Barufi, a jovem do começo dessa matéria, conta que já ouviu coisas do tipo: “Ah, mas uma hora passa... Ah, não sofre por isso não! Tem gente pior que você! Você tem que superar isso!” Mas ela explica: “Não é assim. Não é que eu quero ficar 24 horas por dia deitada numa cama. Meu organismo simplesmente não responde.” 

​

Cristina Delfalque Marcondes considera que a solidão e o retraimento social estão tão proibidos, tão interditados, que quando acontecem, algumas pessoas partem para o ataque, dizendo coisas como: Falta-lhe ocupação! Não está doente! Tem é preguiça! “É como se colocassem em questão: quem é esse outro que se atreve a entristecer?”, reflete ela. Mariana Barufi diz já ter experimentado essa situação: “Eu sou naturalmente uma pessoa bem extrovertida e acabo fazendo várias amizades facilmente. E eu evito contar para as pessoas que eu tenho depressão, porque é bem estigmatizado. E muitas pessoas acabaram se afastando de mim por saber que eu tenho depressão.”

​

Mesmo que passar por dificuldades não seja uma coisa de outro mundo — afinal, todos sofremos, em diferentes momentos da vida, e parte do amadurecimento necessário do ser humano passa por enfrentar e sobrelevar situações difíceis e dolorosas —, o sofrer prolongado e que prejudica a vida das pessoas não pode ignorado. Sob qualquer hipótese. E, para isso, quem está perto daquele que sofre não deve menosprezar os sentimentos do outro, mas agir com afeto e empatia. Mariana conta: “Minha mãe, antigamente meu pai, meu namorado, meus amigos e tal... eles tentam me ajudar de algum jeito. E essa ajuda, essa tentativa de ajuda, pra mim, é muito importante.”

 

QUANDO PROCURAR UM ESPECIALISTA: EIS MAIS UMA QUESTÃO! 

​

Quando alguém precisa lidar com uma condição psicoemocional, decidir ir a um especialista não é fácil ou simples. Em nossa sociedade, surpreendentemente (e infelizmente), buscar psiquiatras, psicólogos e psicanalistas ainda é um tema envolto de tabus. Alguns chegam a dizer que esse tipo de especialista é “médico de loucos”.  

​

Diante da realidade dos preconceitos e visões estereotipadas que cercam as condições mentais e emocionais, uma das saídas pelas quais muitas pessoas optam é sofrer caladas e lidar sozinhas com a depressão. A situação é gravíssima, porque muitos acabam buscando ajuda somente quando seu sofrimento chega ao extremo. E há quem sequer encontre esperanças ou ajuda quando está nesse extremo. 

​

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, mais de 800 mil pessoas se suicidam a cada ano, e há um número muito maior de pessoas que tentam suicídio. Outros milhões de pessoas são afetados pelo luto por causa do suicídio. Ele também foi a segunda principal causa de morte de pessoas entre 15 e 29 anos de idade em todo o mundo, segundo relatório da OMS de 2012, e responsável por 1,4% de todas as mortes no mundo naquele ano, tornando-se a 15ª causa.

​

Essas estatísticas mostram a consequência extrema de negligenciarmos a seriedade da depressão. Não se pode minimizar sua importância, argumentando que as pessoas nesse estado não saem de sua situação porque não querem, por exemplo.  “O que na minha experiência clínica tenho constatado é que o mundo contemporâneo vai exigindo do sujeito um estilo de vida que tem provocado um funcionamento que adoece. Um funcionamento onde não há espaço para a singularidade e tudo é muito compartilhado. Uma ordem social meio maníaca onde ‘é preciso ser feliz’. Todo o tempo! E a qualquer custo! E isso tem custado a saúde mental das pessoas”, afirma Cristina.

​

Mariana Barufi defende: “É importante aceitar que você tem depressão e não lutar contra, mas ir vencendo a depressão. É aceitar que você tem e entender que você não está sozinho ou é anormal e que ‘Ai meu Deus, vou no psiquiatra, sou louco!’ Não!”

​

Para o doutor Paulo Rossi Menezes, é preciso ter consciência de que a depressão é algo do qual as pessoas não têm controle. “Com frequência a gente dá palpite, ou quer falar: ‘Reaja, faça alguma coisa.’ Mas não adianta, porque a pessoa não tem controle. Por isso é que uma ajuda técnica da área da saúde é muito importante. Para que a pessoa consiga começar a se recuperar desse estado.”

 

Uma das chaves para a desconstrução dos estigmas, segundo o médico, é a informação. “É preciso colocar a informação no dia a dia. Hoje a gente pode conversar sobre câncer, que há 40, 50 anos era um tabu, sem problema algum. Para superar essa barreira, que a gente chama de estigma social, é preciso falar sobre a depressão. É preciso informar”, conclui o doutor Paulo Rossi. 

​

Não se pode calar ou ignorar a situação dos estigmas. Mariana Barufi, a esse respeito, pondera: “Eu acho que não somente os estigmas com relação à depressão, mas com qualquer transtorno mental, devem ser combatidos. Acho que em primeiro lugar as pessoas têm que ter noção de que é uma pessoa, é um ser humano ali, e que esse ser humano tem sentimentos, esse ser humano tem histórias... enfim, é uma coisa muito mais complexa. As pessoas te estigmatizam e acham que você não quer lutar, ou que você está sofrendo porque você quer. As pessoas têm que parar pra pensar que é uma doença.” Mais estima, menos estigma!

A

“Quando eu comecei a ter sintomas de depressão, a minha família não aceitava muito bem. Eles diziam que era a idade, porque eu estava passando pela puberdade. Então, eles não achavam que era realmente depressão.  E aí eu só tive ajuda porque eu tentei suicídio.” 

“Cai chuva do céu cinzento

que não tem razão de ser

Até meu pensamento

tem chuva nele a escorrer."

(Fernando Pessoa, excerto do poema “Cai chuva do céu cinzento”, de 1930.)

​

Se você quer entender melhor o que é a depressão e descobrir como ajudar quem tem, confira os vídeos abaixo. São curtos, mas mostram muito do que você precisa saber a fim de romper paradigmas, quebrar rótulos e superar estigmas.

Vídeo 2

A chuva de dentro do estômago da morte

por Marina Yukawa

"Como o personagem bíblico que foi engolido por uma enorme baleia e sobreviveu na barriga dela, Tsukuru caiu no estômago da morte e passou dias sem ver o tempo passar, dentro de um vazio escuro e estagnado."

C

hove lá fora. Chove aqui dentro. A chuva daqui é muito mais forte que a de lá. Pingo por pingo, a água cai na escuridão. As cores desbotam e os objetos apodrecem. O vento forte e cortante me arrasta e me choca contra paredes ásperas. Pequenas feridas se abrem em minha pele fria. A luz intensa dos relâmpagos me mostra a destruição e o medo. Meu corpo estremece.

 

Chove lá fora. Choro aqui dentro. Cada gota leva um pouco de mim e vai apagando meu ser. A água ultrapassa meus joelhos com força e me faz cair, mas o chão já não existe mais. O vento forte cria ondas que balançam meu corpo inerte. O estrondo dos trovões é abafado pela água que tapa meus ouvidos. Tudo é fluido.

 

Chove lá fora o choro do mundo. Aqui dentro a água me cobre por completo e me faz afundar. De algum jeito eu... eu continuo respirando. Não sei que parte de mim consegue sobreviver submersa. Tempo e espaço se colidem e se fundem debaixo da água. Posso ter virado peixe. Posso ter virado água. A chuva demora a passar. Tanto a daqui quanto a de lá.

Haruki Murakami

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos

de peregrinação

Medo do sol

por Daniel Muñoz

Como uma doença invisível mata vocês com as próprias mãos

A

penas quem a vivencia saberá entendê-la, e não terá tal conhecimento quando conhecê-la, mas só quando ela estiver tão integrada à sua vida que você não existe mais sem ela. Tal é com a depressão, esta doença que mata utilizando as suas próprias mãos, que o sufoca com a ajuda do seu próprio corpo, como um golpe que trama para atacá-lo, sabendo exatamente onde está sua maior fragilidade.

​​

Não é justo, também, quem a sente colocar na cruz aqueles que não entendem as características desta doença; afinal, se você não tem câncer ou Aids, provavelmente não sabe o bastante sobre como o câncer ou a Aids tentam derrubar a vida de alguém. Mas há uma enorme diferença: não se levanta nunca a questão de que algo ataca a sua vida nestas condições. Já com a depressão, não é tão fácil para o mundo enxergar, pois ela se mascara de tristeza, de tédio, de dor, de angústia, de loucura.

​​

Em seu atlas sobre esta doença, intitulado O Demônio do Meio Dia – Uma Anatomia da Depressão, o escritor Andrew Solomon demonstra o quanto esta doença ataca quando menos fará sentido para você, se fingindo de uma tristeza que não lhe é compreensível ter:

​​

"Eu só entrei em depressão depois de ter resolvido quase todos os meus problemas. Minha mãe morrera três anos antes e eu começara a me conciliar com isso; estava publicando meu primeiro romance; me dava bem com a minha família; emergira intacto de um relacionamento poderoso de dois anos; comprara uma casa bonita; escrevia para a conceituada revista The New Yorker. Quando a vida estava finalmente em ordem e todas as desculpas para o desespero tinham sido exauridas é que a depressão chegou, dissimulada com suas leves passadas, e estragou tudo. Estar deprimido por ter vivido um trauma, ou quando a vida está claramente uma bagunça é uma coisa, mas sentir-se deprimido quando você está finalmente distanciado do trauma e sua vida não é uma bagunça é terrivelmente confuso e desestabilizador."

​​

Quando acontece esse primeiro colapso, é terrível para a nossa mente compreender, porque algo que lhe foi ensinado que não devia abatê-lo incapacita de forma intensa. Porque sim, somos doutrinados a acreditar que as tristezas, as angústias e os sentimentos ruins não são importantes e não deveriam nos atingir. Para a sociedade atual em que vivemos, ser feliz não é um objetivo ou uma condição. É um pré-requisito mandatório para que você possa ser catalogado como “ser humano”.

​​

Pode parecer absurdo, mas a tristeza é um motivo até hoje visto como justo para afastar ou expurgar alguém dos grupos sociais. Como se aquele que se atrevea não gozar da vida seja uma lembrança constante a todos que nem tudo é e sempre será flores, e que tal agonia pode chegar para qualquer um. E, obviamente, ninguém deseja tal dor, mas negar que esses sentimentos fazem parte da nossa existência não é saudável para nós. Negar ao seu cérebro o direito à tristeza pode desencadear situações muito piores, principalmente quando esses sentimentos vêm como armas de uma doença que lhe retira toda a escolha sobre o que fazer com eles, uma doença que vai além de tudo, que não é só tristeza.

​​

Após o longo e doloroso processo de entender o que acontece com você, de compreender que aqueles sentimentos fazem parte de você e de aceitar que você não pode deixar que eles se tornem armas dos colapsos dessa doença, sente-se a dor de enxergar que ninguém no mundo vai entender exatamente o que você está sentindo. Não existem pessoas iguais e, por isso, não existem sentimentos iguais.

​​

Solomon explica :

​​

" (...) cada pessoa tem sua própria forma de normalidade:

a normalidade é talvez um conceito até mais pessoal que a esquisitice."

​​

Embora as pessoas tenham essas diferenças, grupos de pessoas tendem a querer padronizar o mundo, para que seja menos doloroso para elas entender as diferenças dos outros. É sempre mais fácil agredir aquele que o assusta do que tentar compreendê-lo, e quando é a nossa vez de ser agredidos, tomamos que aquela diferença que faz parte do nosso ser é o grau mais importante de humanidade que nos resta, pois é o que define nossa luta pela existência do nosso ser único.

​​

Essa romantização que fazemos do nosso ser “estranho” ou “louco” aos olhos dos padrões sociais certamente nos ajuda a nos aceitar melhor, mas vem com um preço terrível para qualquer pessoa: o preço da solidão. Pois o “ser social” nunca vai estender-lhe a mão, “louco”.

​​

Mas não podemos perder de vista que se trata de uma doença, e doenças independem de nossas escolhas. Portanto, não podemos optar por nos “encaixar”. Não temos essa escolha. Por isso o tratamento se torna a única forma de salvar-nos dessa doença. Mas este nunca é simples, barato, ágil e muitas vezes é humilhante e/ou degradante. Quase todas as formas de tratamento vêm com estes tais “efeitos colaterais” que tememos. Porém, novamente devo reiterar que apenas quem sente a depressão saberá o quanto se teme mais essa doença que qualquer efeito adverso dos tratamentos.

​​

A dependência de tratamentos farmacológicos talvez arraste consigo os maiores estigmas por fazer visível à sociedade que só funcionamos com a ajuda destes medicamentos. Nas palavras de Solomon:

​​

"Tomar remédios é dispendioso – não apenas financeiramente, mas também psicologicamente. É humilhante depender deles. É inconveniente ter de monitorá-los e estocar receitas. E é terrível saber que sem essas intervenções perpétuas você não é você mesmo, tal como você se conhece. Não sei bem porque me sinto assim – uso lentes de contato e sem elas sou praticamente cego, mas mesmo assim não sinto vergonha das lentes nem da minha necessidade de usá-las (embora se pudesse escolher, teria uma visão perfeita). A presença constante da medicação é um lembrete da minha fragilidade e imperfeição; e sou perfeccionista, preferiria ter atributos inviolados, saídos da mão de Deus."

​

A depressão sempre vai nos mostrar o que não queremos ver: que ser triste é a pior diferença que podemos ter numa sociedade que coloca no maior pilar da sua existência a felicidade. E se não a sentimos, como é normal, não entendemos como é sentir a tristeza também. O final da história da depressão que não é tratada é sempre não sentir mais nada, por isso essa doença cruel o retira do mundo com suas próprias mãos. Porque você não quer mais aceitar viver num mundo onde nada lhe permite sentir mais nada.

I felt a Funeral, in my Brain,
And Mourners to and fro
Kept treading – treading – till it seemed
That Sense was breaking through -

And when they all were seated,
A Service, like a Drum -
Kept beating – beating – till I thought
My Mind was going numb -

And then I heard them lift a Box
And creak across my Soul
With those same Boots of Lead, again,
Then Space – began to toll,

As if the Heavens were a Bell,
And Being, but na Ear,
And I, and Silence, some strange Race
Wrecked, solitary, here -

And then a Plank in Reason, broke,
And I dropped down, and down -
And hit a World, at every plunge,
And finished knowing – then -

Senti dentro do Cérebro um Enterro
E Gente em volta que chorava
E pisava – pisava – e a Consciência
Como a querer chegar -

E ao sentarem-se todos – um Ofício
Como um Tambor iniciou-se
E batia – batia – e a minha Mente
Achei que me faltou -

E aí ouvi que erguiam uma Caixa
Que no meu Cérebro perdeu-se
Com os mesmos Pés de Chumbo novamente
E o Ar – de sons se encheu

Como se o Céu de Sinos fosse feito
E o Ser, somente de um Ouvido,
E eu, e o Silêncio, alguma estranha Raça
Náufraga, só, aqui -

E uma Tábua quebrou-se no Juízo
E eu fui caindo e despencando -
E deparei um Mundo em cada queda -
E compreendi – então –

​

Emily Dickinson
(tradução livre de Myriam Campello)

Histórias de vida

Porta para a alma

por Daniel Muñoz e Marina Fornasier

A

depressão nas últimas décadas vem chamando a atenção de governantes de vários países e se colocando no centro das pautas de saúde em todo o mundo. Um dos principais fatores que levam a essas preocupações do Poder Público é a enorme evidência da depressão em todos os estratos sociais e o prejuízo que ela acarreta ao desempenho profissional das pessoas, o que se reflete em todas as outras áreas de sua vida.

​

Para agravar, a cada dia o número de mortes decorrentes da depressão ou de algum de seus sintomas aumenta. Segundos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 15% dos depressivos comete suicídio. Essa é a consequência mais extrema da depressão, mas ela acarreta muitas implicações que reduzem drasticamente a qualidade de vida das pessoas, mesmo em graus moderados e leves da doença.

​

Em países desenvolvidos, as políticas públicas voltadas para o tratamento da depressão existem de forma mais concreta do que em países subdesenvolvidos, que, em sua maioria, sequer possuem assistência psicomental gratuita, deixando de atender pessoas que não podem arcar com os custos do tratamento em rede particular. No entanto, tanto em países mais ricos como em países pobres, a situação está longe de ser ideal. Segundo dados do Atlas de Saúde Mental da OMS de 2014, governos gastam em média 3% de seu orçamento em saúde mental, variando de menos de 1% em países de baixa renda a 5% em países de alta renda. 

​

Diante deste cenário, um dos grandes desafios em saúde pública hoje tem a ver com o desenvolvimento de alternativas que possibilitem o tratamento da depressão a baixo custo e que sejam de fácil implementação ao maior número de pessoas possível. Por conta disso, algumas iniciativas interessantes vem surgindo e despertando a atenção para novos caminhos no tratamento democrático e acessível da depressão. É o caso de uma trabalho recente da Universidade de São Paulo, em parceria com universidades do Peru, dos Estados Unidos e do Reino Unido, que vem focando o desenvolvimento de um aplicativo de celular voltado para tratamento da depressão. 

​

O projeto, que se chama Conemo (sigla para "controle emocional"), é coordenado pelo Prof. Dr. Paulo Rossi Menezes e se baseia na técnica de terapia chamada ativação de comportamento. Funciona assim: o paciente em tratamento em uma unidade básica de saúde tem a possibilidade de instalar o aplicativo em seu smarthphone. O aplicativo propõe atividades periódicas de estímulo emocional, as quais o paciente realiza e, assim, se sente motivado e estimulado a lidar com a depressão.

​

Mas engana-se quem acredita se tratar de autoajuda, pura e simples. O diferencial do Conemo, segundo o dr. Paulo Menezes, é que, ao mesmo tempo em que o paciente interage com o aplicativo, existe um profissional de saúde acompanhando o desenvolvimento dele e verificando o cumprimento das atividades em todas as etapas que o paciente conclui.

​

O projeto ainda está em fase de pesquisa e, por isso, foca pessoas em depressão que têm doenças crônicas, como diabetes e pressão alta, a fim de cuidar de sua saúde mental e emocional. Mas a ideia é, após a fase experimental, ampliar a abrangência do grupo atendido. Considerando a facilidade de acesso a um smartphone nos dias de hoje, bem como a simplicidade da interface do aplicativo, essa alternativa se apresenta como algo interessante a ser aplicado em grande escala. Além disso, o treinamento das equipes de atendimento de saúde, no caso de técnicos de enfermagem que farão o acompanhamento dos pacientes por meio de um aplicativo de gerenciamento, promete ser rápido e simples. 

​

Segundo o coordenador do projeto, 0 aplicativo é uma forma de fazer com que o paciente entenda seus problemas de fundo emocional e tente buscar sua melhora por meio de uma ferramenta acessível e de baixo custo. Há quem critique alternativas que substituam o elemento humano e o contato das pessoas com profissionais de saúde. Mas é importante reiterar que esse aplicativo só poderá ser baixado por pessoas em tratamento em unidades básicas de saúde e que estejam recebendo acompanhamento médico ou psicológico. Assim, não se trata de substituir a figura do profissional, mas agregar uma ferramenta de fácil acesso e permitir uma abordagem nova e contemporânea de tratamento da depressão.

Alternativas: um aplicativo ajuda a resolver o problema?

por Marina Fornasier e Quéfren de Moura

Diante da proporção com que os casos de depressão vem avançando, é necessário refletir a respeito alternativas de ajuda que atendam a todos os setores da população

Ensaio fotográfico
Caminhos

Na busca do equilíbrio

por Pâmela Carvaho

"Demorei três anos para encontrar a dose certa."

A

pós enfrentar o estigma, o preconceito e aceitar o diagnóstico, a pessoa com depressão tem um novo desafio: o de procurar uma forma de tratamento que seja efetiva para o seu problema. Existem várias formas de se tratar a doença, e não há um consenso sobre qual é a melhor. "Cada um responde de uma maneira a um determinado tratamento. Tem paciente que aceita medicamento e acerta na primeira escolha. Outros demoram anos até conseguir se adaptar com remédios. Alguns preferem investir em tratamentos alternativos", diz a psiquiatra Tatiana Medeiros.

 

A biomédica Ana Paula Leijoto trabalha com medicina alternativa, e oferece tratamento para pacientes com depressão através da acupuntura. "Não tem contraindicação. Com a acupuntura a pessoa não vai passar mal por outra coisa senão por aquela que ela já veio passando mal", diz Ana Paula. "Você sente a mudança que está acontecendo no seu corpo, esse é o grande barato da naturopatia. Faz com que você sinta", completa. Ela também acredita que o depressivo deva procurar outras formas de tratamento antes de recorrer diretamente ao remédio. "Não tome remédio direto. Faça primeiro uma análise com um psicólogo, uma psicanálise. Primeiro converse, dialogue com outras pessoas", afirma.

 

Thaísa Oliveira convive com a depressão desde os 13 anos. Hoje, aos 22, acredita que encontrou, finalmente, um equilíbrio entre as formas de tratamento disponíveis. "Vou toda semana ao psicólogo, tomo sertralina, genérico do zoloft, e pratico exercícios que me fazem bem. A junção dos três me fez melhorar muito", diz Thaísa. "Quando fui diagnosticada, fiz só terapia. Quase não tive melhora e tive que aceitar que precisava de um tratamento químico. Demorei três anos para achar a dose certa e o remédio certo. Depois de um tempo, percebi que esportes me faziam muito bem também, e não parei mais", completa ela.

 

Quando se trata de busca por tratamento da depressão, a Dra. Tatiana reforça a importância de um acompanhamento médico. "O depressivo é quem diz se tal tratamento está funcionando ou se não está. Mas a busca pela melhor forma de tratar a doença precisa ser acompanhada por um médico de confiança, pois ele poderá guiar o paciente de maneira efetiva", conclui.

por todos nós

Uma experiência de conhecimento,

decobertas, aproximação e empatia

N

ós, como grupo, quando idealizamos este projeto, não imaginávamos a extensão do que ele faria conosco e as mudanças que provocaria em nossa percepção a respeito da depressão. Todos compartilhávamos uma grande empatia pelo tema. Mas, ao iniciar nosso trabalho, fomos muito mais longe do que pensávamos. E nos tornamos pessoas diferentes, com certeza.

​

Nossa imersão na questão da depressão foi intensa: tecnicamente, captamos vídeos, gravamos áudios, tiramos fotos, reunimos dados e escrevemos textos. Lemos muito, pesquisamos e investigamos o que podíamos sobre a depressão, escolhendo cuidadosamente o que apresentar a você. Porém, humanamente, foi muito mais que isso: nesse trajeto, escutamos pessoas, conhecemos histórias e colhemos não apenas “números”, mas realidades de vida. Assim, fomos profundamente marcados por aquilo que se apresentou aos nossos olhos. E descobrimos que a depressão é um tema ainda mais profundo do que pensávamos, e extremamente sério. E, definitivamente, entendemos que as pessoas que sofrem com a depressão merecem ter voz e contar suas experiências. Isso liberta tanto aqueles que falam quanto aqueles que escutam.

​

Nosso objetivo, desde o início, foi problematizar e humanizar a depressão. Buscamos mostrar as várias facetas da doença: social, cultural, econômica. Porém, para muito além dos números e das estatísticas, esperamos que o nosso trabalho possa ter causado uma reflexão em você, leitor. As histórias aqui contidas são de pessoas reais, que lutam diariamente contra uma doença séria, que é, muitas vezes, subestimada. Por trás de cada detalhe do projeto está todo o nosso empenho em aproximar o leitor das inúmeras pessoas que sofrem com a depressão.

​

Acreditamos que, por mais difícil que pareça ser entender uma doença tão abstrata, a empatia para com aquele que sofre é fundamental. A recuperação da depressão é um trabalho em conjunto, e o apoio de pessoas próximas é muito importante. Por isso, conhecer é preciso. Que isso permaneça e irradie.

Não é (nem precisa ser) só tristeza

Quem somos nós

André Spigariol

Daniel Muñoz

Marina Fornasier

Marina Yukawa

Murilo Carnelosso

Pâmela Carvalho

Quéfren de Moura

bottom of page